martes, octubre 04, 2005

Estilhaçaria

Sofia,

Se eu te pedisse um ar, um passo, uma via não é muito o que te pediria. Um sim, um não. Estou certa, Sofia, que o que peço é a minha companhia. à mim. Olha com cuidado, querida, essa vida: não é coisa de se angustiar? E há também essa mania, essa insistente mania de a mim mesma eu me abandonar. Peço um temor Sofia para poder em algo me refugiar. É um jeito de mergulhar numa certa nostalgia o que me persegue. Um jeito antigo de ver com meus olhos caminho algum. Lá onde estava escrito vidraçaria eu só pude ler estilhaçaria. E imagine você, que não há, no melhor dicionário tal palavra. É coisa minha, Sofia, querer um lugar de estilhaçar. Um trejeito velho de colocar a raiva em placas de vidros de desmontar. O que pensa a vida de uma desgraçada que só quer quebrar? Formar cacos para depois montar. A velha mania de mostrar a marca do que antes era inteiro e não volta, mas não volta e não volta. Dizem que é mania boa para construir vitral. E vitral, querida, só vi naquela igrejinha lá de onde eu venho. Ergue-se casa com vitral? Preciso apressar a palavra porque quanto mais silencio, menos vida tenho para montar. Mas em verdade, não existe, menina, tempo que se deixe controlar. Ando meio resignada. Imagine você, Sofia, em que ponto chega um coração que outrora só vivia de acelerar. E há também um muro em frente a casa. Alto muro de um armazém. Virou depósito defronte o meu olhar. Tio Nenego robou a placa e pendurou no quarto. Tio Nenego é um desses bobos de asfalto. Acharam foi é boa minha idéia de querer pintar. Você não se esqueça, menina, há também em mim uma pontualidade em querer colorir quando tudo parece parar. Mas a idéia. De que serve a idéia num mundo de continuar? Disseram-me hermética e eu quase acreditei que era mais um modo de silenciar. Você escuta Sofia? Você vê que é sem razão esse meu caminho de estilhaçar? O que sabe o homem da alma de uma mulher que decide pensar? Não pedi conforto. Nem um copo d´água sequer. Mas a mulher em mim encarregada de a mim mesma cuidar disse que era bom que acalmasse o peito, fosse dar uma volta. Resignada aqui estou, Sofia. O que faz uma mulher de amores que não tem lugar? Ama, querida, é o que vais falar. E o meu ódio, Sofia, a minha ira onde devo colocar? E então te peço, querida, e rogo que é melhor calar.

Cala, Sofia, a tua boca à minha desordem.
Luciana.

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