domingo, enero 02, 2022

Baile do Hawai

É uma festa de verão no balneário onde passei minha infância e adolescência.


Meus amigos voltam para suas casas de praia, nessa época. Nos encontramos e nos reconhecemos. O tempo passou aos baldes, mas somos jovens e dispostos. 


Noto que um amigo em específico não solta minha mão e pergunto a ele o porquê. Ele diz que não consegue mais se afastar de mim. 


Sinto um constrangimento. Lembro que sou casada e tenho filhos pequenos e que, portanto, não deveria estar numa festa, alta madrugada e desfilar de mãos dadas com um homem. As crianças dormem cedo e recorrem à mim, nessa hora principalmente. 


 Percebo que estou sonhando porque trajo uma saia floral que já me desfiz faz pelo menos 15 anos. Também pelo fato de que não vou mais a festas noturnas e, há pelo menos três, durmo às 23 e acordo as 5 junto do meu filho mais velho que é madrugador. 


Meu amigo me chama para um canto reservado, perto das pitangueiras, e me pergunta sobre o que estaria acontecendo conosco. Explico que estamos sonhando e que nos sonhos nossos restos diurnos se metamorfoseiam em estruturas estranhas, embora familiares. “Não entendo”, insiste. Ele é físico, professor na conhecida universidade de Campinas. Está de férias, como  em todos os verões, aqui. Tento encontrar um código mais perto de sua linguagem para explicar. Vou pelejando numa cifra outra, tentando confortá-lo. Informo que precisaríamos nos apressar porque logo o sonho acaba e com ele nossa possibilidade. “Para onde nos dirigirmos então?” ele pergunta atônito já sabendo que não tenho resposta. Na sequência, diz que vai me dizer algo muito importante. 


Acordo num golpe só. Meu marido diz que posso dormir um pouco mais que ele ficaria com as crianças para eu descansar. Ando com problemas de memória pela privação de sono. 


Tento voltar para o sonho, mas a força de um enigma a ser desvendado me impede de dormir novamente. É potente essa presença que me acompanha ao longo dos dias seguintes e percebo que eu também não sei soltar da mão desse amigo. 


Não sei muito bem, ainda, qual dos dois não se deixa partir. 

martes, diciembre 15, 2020

Notícias do exílio

No sonho eu apareço fazendo uma manobra arriscada e saindo ilesa. 


O amor vem como uma força que me empurra para adiante, mas estou avisada que não posso me encostar ali. 


O romantismo aparece no meu vestido de flor e a cor digna de uma lady. Diy. Do it yourself, baby. Já não é novidade para você a solidão de nossa humana condição. 


Não sei porque raios coloco uma ladeira íngreme nesse sonho para subir e entrar na casa onde um crime quase perfeito não acontece. Só me sobra rir. Estou. Nem alegre, nem triste. Apenas estou. 


Vivendo um dia de cada vez, noto que o significante pode me levar a uma interpretação infinita e me encaminho para finalizar. Há um ponto cego, resistente à simbolização. Aceito isso também e agrego no meu caminho. Um beijo de amor que me acontece em tempos duros, de desesperança que se concretiza quando me dizem que aquele médico, o que salvou a vida do meu pai, noutro tempo, se encontra grave em uma uti, nas últimas, contaminado pela peste. Eu acho que não disse a ele  - o suficiente - o quanto ele foi importante em nossa família. A vida tem dessas coisas. Oro a Deus que tenha piedade dos homens e me alimento desse sonho para virar antecipadamente meu ano. 


Dois anos atrás eu estava em febre, com o peito queimando. Era a apojadura. E eu me colocava firme para sustentar um outro tão frágil. A natureza tem uma força destrutiva, mas também bonita, quando a gente pode enxergar e estou ciente também que nem sempre isso é possível. 


O mar, ao que parece, será interditado. Será um verão desértico e sem refresco. 


Escuto uma voz que quer falar tudo ao mesmo tempo: “mamãe liga o esguicho”. Ah, sim! Encho uma bacia com a mangueira. “Cê quer pular na água!” O sujeito “eu” ainda não é possível a ele. 


Vou percebendo os tempos que estudei na teoria agora na carne viva e isso é algo absolutamente diferente de só saber. Outra escola. 


Ainda falta uma semana para meu recesso. Não tenho planos. Não dá para fazer muitos planos. O que sei é sobre a realidade da distância. 


O rapaz me disse, citando Dostoiévski, que só se ama à distância. Eu amo então. É bom ter a mediação de um sonho, derivado nessas palavras que te dou. 

lunes, agosto 03, 2020

Indócil

E quando meus olhos não suportam mais ver, retomo os poemas do fazedor. Leio um pouco. Escrevo mais. Caminho sisuda, distante das paixões, constatando o absurdo de saber que é quando o olhar se desvia que se é visto. Um chute no saco que não tenho. Deve doer mais não ter, alguém brincou. Desfiro rápida que não tenho mesmo como fazer o comparativo. Amém. 


Quando fui tragada pelo abismo e me levantei sozinha, ninguém tava lá pra ver e agora essa de que tive muita sorte nessa vida. Senhores, tenham dó. 


Eu estava com uma calça de couro preta e o maluco, cunhado (eu acho) daquele cardiologista, perguntou se eu era a mulher do Batman. Respondi que não, que eu era o Batman mesmo. Depois fiquei com dó porque o sujeito, perfumado na cachaça, não conseguia articular uma palavra. Eu faço essas coisas, me perdoe. Agora mais distante, eu vejo. Se eu soubesse brincar com fogo, não perdia a graça. You Know. 


Na direção, eu vejo ampla a estrada que se coloca diante de mim. Pro que ficou é só o espelho do retrovisor para onde olho muito pontualmente. 

lunes, junio 22, 2020

Dimensão quatro



A  curiosidade pôde mais que o medo
e eu não fechei os olhos”
There are more things , J.L.B.


Há dias com um texto sobre o tempo entalado na garganta. Começaria assim: “O tempo é um menino reto e se situa no agora. É da gente querer voltar com ele para lugares específicos. É da gente querer apressar um tempo que se adjetiva ruim para passar logo a dor, porque o tempo não se adjetiva, ele é apenas, ele vive alheio a nós.” Dali para frente não se escreveria nada, mas era esse trecho voltando todos os dias, perturbando a narrativa presente. Numa manhã de domingo, decidi rápida, passei um café querendo escrever e o sonho da noite me voltou. 

Você me dava quatro abraços ao longo de um único dia. O sonho era de abraço, mas me peguei no número quatro, esse enigma que não se soluciona nunca. Era um lançamento. Alguma coisa nova você fazia acontecer. Eu escutava aquela música e a reconhecia. Então entrava no prédio, mesmo sem poder. Meu filho me esperava dormindo em casa. À revelia disso, eu entrava, me demorava, esquecia como quem esquece de um documento num ajuntamento para dar entrada a um diploma, por exemplo. Era tão óbvio que aquele esquecimento cobraria um preço como eu sou óbvia agora. Você ainda está aí? Bem, e era como se eu fosse um rato siderado pela flauta em Hamelin. Eu colocava em suspensão minha existência e me entregava toda. Apenas ia. Eu era só mais um rato. No hall, muitos entravam e saíam e comemoravam aquele feito. Você me encontrava exatamente no meu olhar de júbilo, aquele que eu faço encantada toda vez que reconheço um criador de verdade. Não sei como você me fazia acreditar que o olhar que eu desferia não era para a novidade, mas para você. Então acontecia o primeiro abraço. Demorado. Devastada, eu precisava muito daquele colo, mais do que eu poderia dar na ocasião. Você pedia para eu não sair de perto um minuto que você precisava dar atenção àquelas pessoas todas, mas que eu não saísse dali. Eu estava de tênis e legging, essa roupa que as mães colocam por ser prática e fazer parecer que você se preocupa com o autocuidado, embora estivesse inadequada para a formalidade da situação (é de mim uma certa inadequação, quase sempre. Nesse ponto, meu sonho imitava a vida). Eu esperava preocupada com a sensação de estar esquecendo algum compromisso. Você voltava de tempos em tempos para me abraçar. E a cada abraço, uma onda quente alcançava o meu coração. Não sei precisar quando decidi pelo compromisso em detrimento daquela fuga. Era uma dor absurda abraçar o princípio da realidade. Uma dureza. Castração operando em tempo real e aquela secura na garganta - a do sonho - a mesma da vida. Corta para outra cena. Na rua da minha casa, todos os vizinhos me julgavam sobre como eu poderia deixar um bebê sozinho em casa chorando para me aventurar por aí. Todos menos aquela mulher que confessara, no privado da clínica, havia ela se apegado às fraldas pós cirúrgicas que sua obstetra recomendou durante quinze dias e ela estendeu o uso por três meses dizendo se tratar do único conforto que tivera no puerpério. Seu filho vai sobreviver à sua ausência, ela sorria para mim e retirava numa tacada uma tonelada de peso das minhas costas. A hérnia entre L5 e S1, que eu fiz no tombo da escadaria da faculdade em que ministrei aulas de como desaparecer completamente, regenerava, instantaneamente, nesse momento, e eu podia acompanhar a cura por um plano em quarta dimensão que se abria claríssimo. Visão de ultrassonografia. Eu vi tudo tudo tudo. Eu sei que me curei ali pela boca daquela mulher que não estava preocupada em me julgar. A única. Eram tempos de uma pandemia esquisita em que a população, relegada à própria sorte por seus desgovernos, ocupava-se de julgar o próprio irmão com muita “frerocité”. Era a mulher da quarta dimensão, a que me salvava. Os físicos eram avisados da existência desse plano. Algumas mulheres também, mas sem o saber desses estudiosos.  Isso quando fui abraçada pela quarta dimensão, esse tempo que eu não esqueço, esse tempo onírico conjuga a verdade absoluta da minha direção. Não queira ver. 

jueves, abril 23, 2020

Decolores 19

Eu ia começar o texto dizendo que no hay banda. Silenzio. Nem uma palavra. Llorona. Bobagem. 

O choro do bebê corta a narrativa. Plena madrugada. Nunca mais soube o que era dormir uma noite inteira sem hora pra acordar. Escrevi a você que sentia falta de tomar cerveja barata e comer aquele churrasquinho na pracinha, às quintas. Eu gosto desesperadamente do que é simples. Uma tentativa de fugir dessa complexidade toda que agora a vida me impõe. 

Discordo tanto da teoria que escolhi para manejar a vida. Desencontro de mim todos os dias. Maternidade é plenitude. Pobre Freud, homem em uma sociedade vitoriana. Maternidade é devastação. É se perder do que você... já era. Não há como voltar porque quando os olhinhos de jabuticaba te acordam 1, 2, 3 ou 4 da madruga, no melhor do seu sono, e você simplesmente vai em frente porque sabe que não tem mais ninguém, além de você, para resolver aquele choro, você se perde num mundo novo, numa falta de concentração absurda para escrever um único parágrafo.

Vai saber o que é estar sozinha com um bebê dias e dias a fio e precisar trabalhar e precisar arrumar a casa e precisar se valer de um falicismo que você se despediu para poder ser mulher para um homem e, desse modo, gerar um filho.

Não, eu não me arrependo um único dia, mas também sinto saudade do que era bom. Essa divisão que hoje me ocupa e me compõe não se resolverá nunca, eles disseram. Ok, computer. Não me meto mais em confusão. Sigo em frente. Tenho responsabilidades agora que não me dão espaço para me perder em rivalidades gozosas. Lembra de mamãe descendo o terço? O mistério gozoso. Que saudade. Dei pra rezar também. Agradeço todos os dias a oportunidade de viver, apesar de.

Lembro Dona Olga de olhos fechados cantando o louvor muito mal realizado do ponto de vista literário que dizia “Decolores! Decolores são todas as flores, são os passarinhos”. É bom me encontrar com a concretude desse verso, com a ausência de metáfora, com meu filho constatando simplesmente: “a flor, mamãe” diante de uma flor comum, vegetação rasteira na beira da praia que me dirigi para me isolar da doença desses nossos dias. 

jueves, noviembre 14, 2019

The joy in your heart

Deu saudade de te contar tanta coisa nova que você perdeu, mas é melhor assim que você não tem cara de que curte histórias de superação. Sei que sou convidada às profundidades para me tornar melhor para os que me querem e muito mais cascuda para os que me colocam seus olhos grandes. Vade retro. Ser uma mulher adulta é não fechar os olhos para o duro fato de que os inimigos, sim, eles existem. Sigo em paz, esse é o meu exercício. 

O mesmo barulho da chuva que me acalma desaba casas, estradas, sonhos: eu não sou tão boa assim, tenho minhas vontades, apesar de. Muita coisa nova se abre no front e não sei com que energia ainda me ergo de uma carcaça de 57 kg para buscar. Vezes pareço de uma fragilidade infinita, mas é quando o real desponta com suas ignorâncias que reconheço minha força e minha insistência na vida. Quantos já teriam desistido no meu lugar? Eu não sei, mas especulo. 

Fazendo testes de Q.I. pela rede me surpreendo com a minha inteligência linguística. Eu achava que era só um amor, mas parece se tratar de uma alta habilidade. Ainda procuro um desses profissionais que aplicam esses testes (com os quais eu tanto implico) só para me ver um pouco. Todo mundo precisa de alguma imagem para enfrentar a vida. 

Se só te escrevo agora, não é porque o correio se atrasou, é porque estava administrando o fluxo de tanta, tanta, água passando por debaixo da ponte e, sei, ainda tem muito pra passar. 

Vou te dizer sem te contar: a vida foi generosa comigo pela primeira vez. Quem está acostumado ao caos fica com medo diante de tanta harmonia. É muito bom poder te dizer que a renovação da vida me aconteceu e que ainda estou boba em meio a tudo. Prezo tanto pela casa impecavelmente limpa e organizada que nunca imaginei poder admitir alguma bagunça fora.  É que meu peito tem encontrado a paz de ser quem eu sou com todas as limitações que invento enquanto me escrevo, com toda essa alta habilidade que nem sabia que tinha.

O melancólico se agarra facilmente à imagem que o outro lhe dá. Entretanto, o que te digo hoje, é de ordem absolutamente outra: das imagens sobre mim, eu escolhi gostar dessa. Isso é uma decisão e é também uma escolha. 


É promessa de vida no meu coração. 

domingo, noviembre 11, 2018

recreio


Alan me ligou de um número desconhecido e, surpreendentemente, atendi. Assim que ele se apresentou já mandei um porra, Alan, por que você não me mandou uma mensagem antes? Ele disse que ficou com medo de eu não querer falar com ele. Na ligação, perguntou o que eu estava vendo da janela do trem e eu disse que não estava dando para olhar janela nenhuma, porque era hora de seguir em retidão, sem muita poesia. Estava cheia de prazos e desgostos, embora uma novidade se constituísse. Ele me perguntou sobre o lúpus e eu expliquei que estava regredindo, mas Alan sabe o quanto os corticóides me deixam mal-humorada. Vi que ele queria assistir a vida na janela comigo e só conseguiu dizer porra, você é foda, seu mal é esse, quando eu disse que andava em retidão. Há dias sem conseguir escrever, depois que acordei desse sonho com Alan, alguma coisa destravou em mim. Não perguntei por que Alan mudou o número de telefone e eu também não apaguei da minha lista o velho que agora apresenta a foto de um matagal com os seguintes dizeres at work. Vai entender... Alan é cheio de história. Ele diz que é antigo, por isso prefere ligar e não mandar mensagem. Eu digo que eu também sou antiga, mas que me adaptei. Explico para ele que é preciso, minimamente, dançar conforme a música. Mas, Alan, se adianta em deboche e diz minha querida, quem faz a música sou eu. Ele também costuma achar que eu tenho sempre o dobro de anos a menos do que eu realmente tenho dele. Acho que é um jeito de me infantilizar, de me tornar mais possível. Antes de desligar, tive tempo de dizer que se, da próxima vez, ele aparecer com esse sotaque ridículo, desse povo que se acha superior a nós, que vou desligar instantaneamente. Saindo do primeiro dia de resfriado, consegui ligar o computador e escrever um texto, meio mequetrefes, mas que já me libera para o feriado sem tanta culpa. Obrigada, Alan.