lunes, agosto 02, 2010

nem índio, nem Bartolomeu Dias

(...) e logo que a decisão foi tomada, perguntou mais se lhes parecia bem tomar aqui por força um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza. Sobre isto acordaram que não era necessário tomar à força homens, porque era geral costume dos que assim eram levados à força para alguma parte dizerem que ali há de tudo quanto lhe perguntam; e que melhor e muito melhor informação da terra dariam dois homens dentre os degredados que aqui fossem deixados, do que eles dariam se os levassem, por ser gente que ninguém entende. Nem certamente eles aprenderiam a falar como nós para o saberem tão bem dizer que muito melhor estoutros não o digam quando Vossa Alteza aqui comandar. E que, portanto, não cuidássemos de tomar ninguém aqui à força, nem de fazer escândalos, mas sim, para que desta maneira fosse possível amansá-los e apaziguá-los, somente deixar aqui os dois degredados, quando daqui partíssemos.
Desta maneira ficou determinado, por assim parecer melhor a todos.
Resolvida a questão colocada pelo Capitão, ele nos disse de irmos nos batéis em terra para uma definitiva verificação do rio e também para folgarmos. Assim fizemos: descemos à terra armados e levávamos a bandeira conosco. Eles estavam ali na praia, à boca do rio, para onde nos dirigíamos; e antes que ali chegássemos, pelo ensino que dantes tinham, puseram todos os arcos por terra e acenavam que saíssemos. Mas, logo depois que os batéis puseram as proas em terra, passaram-se logo todos além do rio, o qual não é mais largo que um jogo de mancal. E mal desembarcamos, alguns dos nossos, passaram logo o rio, misturando-se com eles. Então alguns deles aguardavam; outros se afastavam do lugar. Porém, tudo de tal maneira que no final todos andavam misturados. Eles ofereciam arcos e flechas por sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer coisa que lhes fosse dada.
Trecho da Carta de Pero Vaz de Caminha


Chego um pouco atrasada para banho e almoço. Devo seguir minha rotina após as obrigações básicas.
Ele se encontra parado em frente à nossa porta. Peço-lhe licença para entrar em minha própria casa. Ele sorri. Mostra-se simpático, evita qualquer espécie de conflito. Identifica-se através de um crachá. Chama-se Paulo ou qualquer nome próximo. Consinto sua entrada. Ofereço-lhe a área de serviço e um dos banheiros. Ele não questiona sobre a existência de algum outro banheiro na casa. Ele invade. Ele sabe que invade, mas finge um certo pudor em invadir. Ele finge bem. Após a minha oferta dos cômodos ele apresenta um pó marrom. Entra no box de meu banheiro arrastando a testa molhada de suor - de andar a manhã inteira pelo bairro praticando outras invasões - em minha toalha. Sinto nojo e penso que será necessário trocá-la. Ele, por sua vez, justifica o tempo inteiro a invasão alegando tratar-se de um veneno bactericida para me proteger. Ele diz que quer me proteger. Parece um homem bom. Tenho fascínio e respeito pelo trabalhador. Penso em oferecer também o outro banheiro que ele ainda não sabe que existe e só não o faço com o objetivo de não atrapalhar o que lá dorme, depois de uma noite intensa de trabalho. Tenho novamente fascínio e respeito pelo trabalhador. Ele parece simpatizar comigo. Olha a minha estante de livros. Supõe que sou estudante e oferece, delicadamente, à mim sua interpretação. Sorrio. Não deixo de ser. Há a carta de Pero Vaz de Caminha sobre a poltrona da sala. Perguntam-me porque ler, nessa altura dos acontecimentos, a tal carta. Violo mais uma vez minha privacidade. Respondo que acredito se tratar de um bom exemplo para discutir as origens de uma invasão, dominação e selvageria. Preciso aprender com Caminha. Preciso caminhar.

[o telefone toca nesse instante e vai durar algum tempo. É importante que eu atenda. Gostaria de não o fazer. Gostaria de não me sentir tão invadida pelo que me solicita o outro em meu tempo de escrever]

Reconheço então que existe uma invasão escolhida e outra imposta. A última me angustia muito mais que a primeira. Tenho notícias de que a maior resistência à invasão européia foi realizada pelos índios canela-verde. Os de minha terra. Esboço alegria nessa descoberta. Mas é só um esboço.
Acho mais fácil, em nosso tempo, ser o Bartolomeu Dias, ainda que ache mais bonito o outro lado.
Dizem que inteligência mesmo é se deixar invadir quando se percebe a guerra perdida, se misturar.

Concluo que não me presto bem a lutar do lado do invasor ou do lado do invadido.

É despertado em mim um resto de voz que ainda não consigo atribuir autoria. Esse resto me dá fé e alguma indicação, preciosa indicação me parece, para sair do impasse:
"Vá, minha filha. Caminha!"

Sentada no sofá, suspiro exausta com a carta no colo.

2 comentarios:

Natália Nespoli dijo...

Lu, me impressiono com seus escritos. Gosto muito!

Matt Kane dijo...

Vieram os portugueses com seus coletes azuis, criticando todo pote estampado, pneus e caixas d'água , espalharam seu veneno pelos ralos e partiram. Só nos restou trocar as toalhas...