Soturnos estes fios que nos ligam ao maternal umbigo, sofridos estes fios, tensos, agudos, o caminhar difícil sobre eles porque os pensamos quase sempre como lisos, que a palma dos pés há de tocá-los sem ferir-se, que neles caminharemos deslisando, pois não sois fios da nossa própria carne? Pesados fios penugentos é o que são, caroços espinhudos ponta a ponta, a mãe se vê desabrochada, medem-se as duas como duas lagartas, uma se dizendo sabedoria, de caldo grosso e aromado, e a outra passarinha exibindo plumas ofuscantes, plumas novinhas e pernas apressadas prontas para se abrirem e que se veja o fundo desejado, mãe e filha tormento sempre e muita solidão, e espadas, gumes o tempo inteiro se batendo, posso falar diz uma porque já sei a estrada e nela caminhei à noite e ao sol, pedra nenhuma te fará sombra e moradia, ora deixa-me olhar a estrada com os meus próprios olhos diz a outra, se não há pedra bondosa deixa-me olhar o vazio do lugar, se me vou ferir deixa-me senti-lo pois só aprendo se em mim se mostra o ferimento e talvez a ferida se enoje de mim (...)
Matamoros - Hilda Hilst
Achava que só poderia ler quando conseguisse ler
como ela lia!
Perdia-me nas suas leituras e adiava as minhas por achar mais apropriado aprender da forma como ela fazia.
Achava que ela havia roubado o meu grande amor
e ela, aos pontapés, me destituía da pior maneira possível
da pior maneira que uma mulher poderia destituir um ser humano do próprio sexo
a maior leitura que fiz, encorajada dessa maneira por ela,
era a de que na realidade eu não passava de uma roubadora
ela a defender o seu território não sabia o tanto de felicidade que poderia me trazer
me expulsando dali
ela velha, despótica, surda, mas a preferida, aliás a única
eu, a fedelha roubadora
eu, que nunca quis invadir o terreno alheio, assustava-me de compor aquela cena
não como a invadida, mas como a invasora sem noção,
sem leitura
quanto mais ela gritava comigo, mais me embolava nas leituras
imaginava, quase que tendo certeza, acerca das músicas que ouvia na infância:
ela cantava em francês para mim
fui estudar a língua materna
e descobri no texto da música que criei um caminho tão próprio, tão meu
que decidi mergulhar na escrita de um livro
hoje me vejo perdoando passados
que impulsionam a um futuro que só me interessará se puder existir
e da forma como ele puder se escrever
concluo que não quero evaporar tão cedo
concluo que não é mais tempo de mágoa e melancolia
concluo que o meu umbigo só existe porque um dia do dela se separou
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