(...) enquanto combatia na escuridão (enquanto seu corpo combatia na escuridão), começou a compreender. Compreendeu que um destino não é melhor que o outro, mas que todo homem deve acatar o que traz consigo. Compreendeu que as divisas e o uniforme já o estorvavam. Compreendeu seu íntimo destino de lobo, não de cachorro gregário; compreendeu que o outro era ele. Amanhecia na imensa planície. Cruz atirou por terra o quepe, gritou que não ia consentir no delito de que se matasse um valente e pôs-se a lutar contra os soldados, junto com o desertor Martín Fierro.
Jorge Luís Borges – Biografia de Tadeu Isidoro Cruz
Jorge Luís Borges – Biografia de Tadeu Isidoro Cruz
Quando Ana Lúcia Boechat começou a entender da diferença entre homens e mulheres era ainda muito nova. Atravessava o que convencionou-se chamar a adolescência. Seus primórdios. Não entendia das vantagens de ser mulher e talvez por isso mesmo remetia-se sempre a um irmão que era homem, agora o mais novo. O gregarismo que este tinha, faltava-lhe. Não entendia como João suportava tanta gente sempre e ao mesmo tempo: “- Deve haver uma hora em que fica enfastiado” – pensava. Mas a mania de João se estendeu por toda vida. Agora, ocupava a maior cátedra que um físico poderia almejar. Sua casa permanecia sempre cheia de amigos, familiares e conhecidos que queriam se aproximar, não tardava tornavam-se quase que da família. Precisou mudar-se, precisava de uma casa maior com mais portas e janelas. Era impressionante a disponibilidade interna existente nesse irmão.
Lembrou-se de um episódio na praia – que se de começo trazia-lhe ressentimento, logo lhe proporcionou grandes risadas, a sós, achava-se louca por rir sozinha: Na tranquilidade da maré que baixava por volta das dez nas proximidades de sua casa de veraneio, Ana Lúcia massageava o corpo no mar, mas sem molhar a cabeça. Sentia muito frio. Isso é importante dizer. João, muito atento à melancolia da irmã, de um salto só entrou na água e começou a atirar areia contra o mar e dizer: “ - manda mais forte, a gente aguenta”. E ria. João não se importava com a semelhança, atribuída pelos nativos, entre ele e Zezinho- caixa-forte, um muleque retardado vindo de não sei onde, filho de não sei quem, que habitava a região– o que muitos acreditavam – e também não temia a fúria do mar.
Rezava a lenda local que uma vez atirados dez punhados de areia contra o mar, a fúria deste revertia-se em maré alta, ondas desproporcionais, o que atraía surfistas na região. A responsabilidade, provavelmente, era de João com esta mania infeliz, pois só foi ele se afastar do local, a região tornou-se inabitada, com exceção óbvia de Ana Lúcia que, às vezes, precisava passar por ali e mergulhar e, certa de sua solidão, ameaçar, sovinamente, algum punhado de terra, o que nunca ocorria de fato.
Muito pouco cabe acrescentar da vida dos dois irmãos, pois não é disso que se trata. Nunca foi. O que caberia ainda dizer é que da pior maneira, o que já deve ser óbvio, Ana Lúcia Boechat entendeu das diferenças: lúcida, desvelada e sozinha.
Agora senhora, recebe o prêmio Nobel de literatura e a distinção Honoris Causa da Universidade de Décalage, Paris, onde continua vivendo sozinha, sem filhos, marido ou coisa que o valha.
Brilhantes, os Boechat, viviam cada qual à sua maneira ou, como convencionou-se dizer, cada qual em seu quadrado (espécie de feliz expressão cunhada por pensadores do século XXI para designar não o individualismo, mas a singularidade): havia o que vivia a história e outro que fingia a história e eram inacreditáveis no que faziam, terrivelmente brilhantes.
Pós-escrito: vem daqui
2 comentarios:
Que outros cantares há que aqui possam ser expressos para euposa ler querida? No aguardo, de una feminina persona que muito le gusta.
me conta quem é você, vai...
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