domingo, agosto 22, 2010

bento ferreira VI

Minha recusa (ou seria atraso?) em continuar a contar o que me foi transmitido sob forma tão real e cristalina tem nome: medo.
Quando se avança muito rapidamente, o corpo fica feito pedra e quer parar, o meu olhar, a minha voz, os meus cabelos todos querem parar
de crescer.

Lascar a pedra. Desgastar a dureza até virar pó tão leve capaz de ser carregado pelo ar. Desde a idade da pedra lascada é assim. E depois o ferro. Lascar o ferro. Desgastá-lo até o fim do defeito, deformá-lo. Consertar trilhos, possibilitar a passagem. Eu, Bento, o ferreiro, dedicado integralmente à tarefa de moldar, modular a dureza do metal,
a dureza do mental. Bento, o filósofo.
Se transmutado assim poderia sê-lo, sabê-lo, contá-lo, falsear a verdade que sabia.
Desejei em sonho um desvio justo, digno, legítimo, uma pausa para respirar.

. . .

Caminhava pelas ruas do centro da cidade e via com muita nitidez a catedral, o palácio Anchieta, o prédio onde funciona a secretaria de cultura - pensei em invadí-la e obrigá-los a publicar a verdadeira história de Bento Ferreira, mas abandonei a idéia porque vi o porto de vitória e fiquei fascinada. Todos surgiam em cores flúor. Suspeitava novamente em se tratar do sonho da roubadora em interferência. Posso afirmar com alguma convicção que meus sonhos me aparecem em preto e branco.

No momento dessa constatação um holograma do bairro do ferreiro se impõe sob as ruas do centro, atravessa caindo inicialmente em minha cabeça e depois toma o corpo todo.
O holograma se sobrepunha ao centro e feito um tapete mágico me servia de chão para caminhar.
Eu estava então completamente perdida no cruzamento da Chafic Murad com a Joubert de Barros. Um homem muito bonito e jovem surgia para mim num terno branco perguntando em que podia ajudar. Até suspeitei que podia ser Bento, mas pelo brinco de argola prata na orelha esquerda e o tênis all star, apesar do terno, adivinhei que não. Nesse ponto eu não resistia e virava uma espécie de espanhola moderna: me quedava enamorada. Eu me sentia muito, mas muito viva. Disse a ele que tinha a verdade de uma incrível história e tão importante que precisava contar, escrever de alguma maneira. Uma louca-andarilha-catadora-de-latinhas surgia e avisava "a roubadora está chegando, está chegando a roubadora", depois saía gritando impropérios e obscenidades. O moço do terno branco me puxava pela mão e dizia algo enigmático, parecia querer me ajudar: "entre jornalista e empresário não se perca, escuta o ferreiro, coração" e se despedia com um beijo.

Um vidro de shout surgia. Entendia que era preciso limpar o mofo, era preciso sair do centro
de mim
se quisesse contar a história do ferreiro, de fato.

Eu me via de uniforme e mochila indo pro colégio que levava nome de santo localizado na região. Aparentava quatro anos de idade e atravessava sozinha e muito à vontade a Chafic Murad. Por conta disso percebi que estava num sonho e, justamente, por perceber, acordei.

. . .

O holograma se desfez rapidamente e o centro da cidade virava deserto em mim.
Concluí que os devios que, eventualmente, tentasse fazer na direção de Bento Ferreira seriam à mim impossíveis.
Quanto mais quisesse fugir, com mais força Bento retornaria.

Já havia alguns textos em atraso, textos que pretendiam dizer da dor de existir, do peso da vida, da rivalidade entre uma mãe e uma filha, do teatro obsceno, enfim... nada disso se escreveria, caso não conseguisse dar forma à história secreta.

Bento não era dado a negociações e concluí que havia me escolhido, pois eu sabia me deixar invadir pelos signos alheios.

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