Não terão agora minha atenção coisas assim chamadas banais como fechamento de faturamentos, laudos psicológicos, estatísticas de produção e afins. Não terão mais minha atenção concentrada todas as burrocracias que já sei fazer no automático e sem investimento. Muito mais me interessam alguns fatos, tais como os motivos que levam as pilastras do residencial estoril parecerem mais gordonildas hoje do que na época em que você me carregava pela mão ou por que precisei representar meu cansaço num bocejo longo ao frentista abrindo a boca para dizer “commmmmpleta” e ele, atestando óbvio, “tá cansada, hein, dona” ou ainda minha insistência em olhar nos olhos do porteiro só para dizer boa noite.
Ele me olha com espanto. Todos os dias essas sacolas com champinhas, retalhos de costureira, revistas velhas, embalagens amassadas dos presentes de natal que as pessoas abrem sem emoção e descartam antes da hora. Nem sei desenhar e empreendo uma técnica singular na construção de uma menina com o joelho ralado, sangrando, que evidenciarei com purpurina vermelha tal qual um quadro que vi e fiquei impressionadíssima em dois mil e oito, no malba, talvez. Ainda não sei como essa menina se machucou, mas me lembro de Estefânia, meio louca, com a lata de cerveja barata na mão, dizendo que era filha de pais separados e que sempre, na ocasião de visita ao seu pai, caía no hall de entrada e feria o joelho, por isso ele não cicatrizava nunca. Estefânia me parece uma excelente referência porque lá se vão quase dez anos e eu ainda lembro, como se fosse agora mesmo, o ensinamento que ela nos garantia, dadivosa, com suas histórias: é preciso manter o buraco.
Receberei infantil a revista que passei a assinar esse mês, todos os meses, com a mesma alegria com que recebia a página em branco de meu diário aos oito. Querido diário, a gente cresce muito rápido – eu dizia – já preocupada com o tempo que me escapava sem dó, nem piedade.
Acho muito perigoso prosseguir na leitura desses diários antigos que peço que alguns outros os guardem, os preservem, mas bem longe de mim, quase que num desespero. A mãe que eu pinto sempre numa busca incansável de mais espaço, mais espaço, minha filha, limpar a alma, pensando em descartar meus restos ou, pelo menos, me impelindo na responsabilidade de me haver com eles.
Ok, já estou pronta, dois mil e doze, e aí vou eu.
2 comentarios:
eu estive no malba em 2008. lugar bacana, arquitetura leve. teu texto é leve também, com adereços, retalhos hilstianos. esses detalhes são o melhor. e saber desenhar talvez nem seja contemporâneo... não saiba. sem outra confissão possível, arrisco dizer que hje é uma dia cinza. e lembrei de um comentário.. 'respira, vai'.
Querido Elton, somos compostos de muitas co-incidências. Talvez por isso o malba em 2008, talvez por isso minha crença de que os nossos textos dialogam.
Lembra? Eu comecei 2011 com uma leitura do Calvino - my boss - a propósito da leveza. Bom, muito bom, você me dar esse retorno. Acho que minha aspiração se cumpriu. Agora preciso relançar projetos para 2012 e Estefânia com o joelho ralado, uma mulher, que mais parece uma menina levada, pode ser um bom recomeço. E ao escrever isso, me dou conta de que "menina levada" é polissêmico! Uhuuulll. Venha 2012 :) Acho que pra mim já começou, não é mesmo???
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