Não creio ser demais insistir que a memória de alguém
é sua verdade inventada, porque, às vezes, sinto que meu texto pode parecer
verdade verdadeira do que acontece comigo. É isso também, mas não só.
A memória de um dia triste, nublado é recorrente e
eu era muito nova quando fazia contato com essa temporalidade. Acho que sempre fui
meio ET: as crianças se ocupavam de brincar e eu de fazer contato com essas
coisas.
Lembro, com nitidez, de meu pai abrir a porta do
quarto e perguntar se eu estava estudando. Ele sempre achava que eu estava estudando
e eu sempre dizia que sim, mesmo quando não estava. Naquele dia eu só estava
fazendo contato com a tristeza, mas como se já soubesse que esse tipo de
verdade assusta, preferi dizer que estava lá estudando com a porta fechada,
aprendendo com as letras de plástico que hoje uso no meu trabalho com as
crianças. Meu pai queria me mostrar uma coleção de livros infantis, algo do
tipo “As aventuras de Beto e Bia” e disse que, como eu era muito estudiosa, no
final do ano estaria lendo a coleção toda, ele tinha certeza. Balançava a
cabeça vaidoso como se a aposta dele em mim para a leitura fosse a coisa mais
nobre desse mundo. Meu pai era um homem muito bonito, alegre estava certo. Na
verdade, antes do final do ano já tinha aprendido a ler, tamanha era minha
ansiedade em conhecer o mundo de Beto e Bia.
Aos oito, minha ansiedade se deslocou da leitura
para a escrita: no aniversário ganhei três diários ao mesmo tempo, era como se
me dissessem “escreva e guarde os seus segredos, não saia por aí contando a
ninguém”. Eu ficava muito angustiada. Não queria ter tanto segredo assim para
escrever, mas precisaria preencher aquelas folhas até o final. Folha vazia me dava
pânico. Nunca parei. Escrevo até hoje com a mesma agonia de quem tem três
diários em branco para preencher como se o mundo fosse acabar amanhã cedo, bem
cedo.
Sei que escrever tem uma função para mim. Tudo o
que eu escrevo é uma mistura tosca do que vivi, do que eu acho que vivi e de
coisas que, mais conscientemente, sei que invento. Não faço literatura porque
estou muito comprometida em reviver o tempo de esperança que se abriu com a
possibilidade de ler um dia Beto e Bia. Ressinto-me, no entanto, de não poder
fazer literatura. Sei dos meus limites e impossibilidades. Escrevo no divã
também, mas existem os restos não simbolizáveis numa análise que ficam
retornando com força diretamente proporcional ao recalque que empreendo a essas
(s)obras.
Meus inimigos sabem que para me matar é muito
fácil, basta me impedir de rearranjar minhas letras fundantes. Mas eles não me
querem morta porque – imagino – no fundo se identificam com o que escrevo.
Minha escrita me protege de ser morta. Voilá.
Eu gostaria muito de escrever coisas do tipo: “Hoje
fui a uma loja de departamento para comprar calcinhas de algodão. Estou
impedida de usar rendas por recomendação médica. É muito engraçado observar o
comportamento das pessoas no setor de lingerie dessas lojas. Existe um
constrangimento colocado.” E existe mesmo, como existiria se todas essas coisas
que acabo de dizer no exemplo fossem verdade.
Fui ensinada a ser crua, mas por força da sobrevivência
precisei aprender política. Escrever me ensina a costurar alguma tela para
disfarçar minha nudez, escrever me ensina a seduzir. É só para isso que escrevo
e não devia dizer nada disso para o meu texto não perder força, mas, a verdade
mesmo é que ninguém é de ferro e a outra verdade, ainda mais verdadeira, é que
o leitor sempre tenta achar alguma verdade no que lê. Generosa, deixo-o aqui.
1 comentario:
é muita generosidade
sua escrita
quero todas as suas verdades
e mentiras
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