A musa, cansada de ser musa,
caminha rumo à masculinidade esperada das mulheres de seu tempo. Troca a saia
pelo jeans e mete um salto não muito alto – resquícios de sua vida de musa. Os
óculos escuros a blindam de toda a insegurança que portam as musas. Esse
aparente desvio de olhar atrai olhares todos atentos. Ela, enquanto musa, sabe
que é na falta que o outro pode desejar-lhe toda. Ela olha, apesar das lentes
que disfarçam o que olha. Ela olha certificando-se de que o outro a olha,
aguardando, por detrás das lentes que não mostram o seu olhar, o olhar que
poderá compô-la. Ela é musa, por mais que resista, é mulher e se sabe portadora
do buraco da incompletude. Obtura, contudo, essa falta no O.B. É grave, apesar
de mais uma vez, não se saber grávida, via fluxo sanguíneo do tipo A plus, tão
comum.
A musa, cansada de ser musa,
caminha rumo a uma queda que a deixará com a coluna lesionada para sempre. Mas
isso ela ainda não sabe. A musa não sabe que no seu afã de ser uma grande mãe
para seus alunos se tornará coxa da perna esquerda. Não sabe ainda que a dor
física lhe tomará toda a energia empregada no ato disfarçado de ser musa para
sempre. Recebe uma notificação do RH por ter subido a escadaria de salto no
modo fugiratodavelocidade. Questionará
doce, embora implacável, se o coturno-epi será disponibilizado pela
instituição. A milica do RH não gostará de sua observação e fechará o cenho. A
musa é fina e pedirá que perdoem-na de brincadeira tão fora de hora, que foi
uma tentativa desrespeitosa de rir de sua própria dor.
Na queda-musa tentará agarrar-se
a um poste de luz apagado e acenderá, para o espanto de todos, o poste condenado.
Não será poupada da observação do serviçal que constata o transbordamento. A
energia da musa, que se esforça para recalcar a mulher e fazer nascer a mãe
daqueles meninos, mostrará o seu vigor.
No hospital, o ortopedista não
honrará seu título de homem estudado. Mostrar-se-á rústico como um jagunço.
Apalpará com violência o corpo da musa na tentativa desesperada de localizar a
dor, realizar o diagnóstico e chamar o próximo da fila. Findar-se-á a sessão de
tortura, assim que for localizada a dor na altura de L5-S1, a musa receberá com
alegria uma dose cavalar de morfina. Haverão delírios.
Por que os hospitais são tão claros, Il? A dor exige penumbra e nada de
objetividade... Eu lembro de todas as noites que não foram suas e também dos
dias que me fiz musa para uma imagem criada tão só por mim, na esperança de encontrar uma borda para a dor
de ser mulher. A serenata que não pude ouvir na praça que nos separa. As tardes
que foram vividas, o encontro que não se deu, a desesperança nos nossos olhos
marejados, a febre nos nossos corpos, nossa vulnerabilidade, sua covardia,
minha covardia. Eu dizendo que já era tudo tão difícil, tão duro. E você
dizendo que sim, tão complicado. Alguns encontros coloridos, o tempo passando
depressa, a melancolia dos nossos gestos, o medo, a fuga a toda velocidade
encenada por mim, efetuada por nós.
O dia seguinte seguirá na ressaca
do opióide, no humor melancólico que prossegue a despedida de um delírio
gozoso, de um amor que não frutificou, de um tempo que ficou pra trás e que
retornará, sem mais nem quê, com intensidade proporcional ao seu recalque.
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