sábado, enero 23, 2016

Anacrônica

Naquele tempo eu me apaixonava por Borges, sem saber que me apaixonara por Cervantes. Uma escrita que se pretendia cópia da outra. O deboche do espanhol às histórias de cavalaria inauguraria o romance moderno. Uma paródia, como queira alguns senhores de ar grave que ocupam a anacrônica universidade brasileira. Borges nunca viu em Cervantes uma paródia. Quanto à mim, olho o livro de método para flauta transverso, aposentado na estante, e não sei mais ler a cifra das canções medievais que um dia toquei de cor. Minha flauta eu doei. O que eu quero dizer é que Borges hoje me leva para o medieval como a flauta um dia o fez: o amor cortês, a cavalaria, o espanhol antigo, atualmente, me parecem uma ingenuidade do precursor encrostadas em mim. Mesmo sem saber me despedir sigo o bando de meu tempo, pra não morrer na melancolia dos que me antecederam. O céu, longe de ser o limite, é o impossível que me impediria a visceralidade que agora trato, meu pathos é insistente. Mas vou pra cima dele, letradona. Paulo ri no bar do homem que vende flores quando ele diz "Vos quereis..." me dizendo que o Vós cervantino é o grande deboche da obra, é o anacronismo da linguagem "Ora essa, Luciana, isso é o quixotesco, ninguém fala assim mais, você percebe?" Meu co-orientador é dado a filigrana da coisa toda e, no entanto, mora nos Estados Unidos. Me apresso pra não perder a piada. Meu peito não dói que as tecnologias de saúde já inventaram uma droga pra isso. Paulo se preocupa comigo quando eu digo que não bebo mais. Desconfia, porque é inteligente, mas eu não afirmo nada, que um véu é importante pra gente suportar juntos a longa jornada. Gosto da amizade dos homens porque não permite que eu desmonte, me coloca cascuda. Um dia vou citar a frase que está perdida em algum livro que li "Não existe nada nos livros além de nós mesmos". Paulo pede que eu me esforce pra lembrar, que a frase é importante pra pesquisa e se despede.  Eu digo que me esforçarei. Na cabeceira da cama tem um Cervantes, um Borges e um aparelho de celular velando, se não produzindo, o sonho dessa noite.

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