Passaram-se alguns bons anos. Bento Ferreira já havia se consagrado como uma região nobre da Ilha. Quem diria... Bento, o Ferreiro tornar-se-ia Bento Ferreira.
Recebi em minha casa um convite para uma espécie de exposição acerca do que já havia sido produzido na Ilha sobre a região: fotógrafos, poetas, jornalistas, psicólogas, empresários, historiadoras, psicanalistas, bucetistas, emplumadas, todos estavam lá para compor a cena local. O convite me chegara de maneira totalmente anônima e resolvi que deveria comparecer também em anonimato, silenciosa.
Bento Ferreira era uma fonte de inspiração infinita: fotos, cartas, textos poéticos, jornalísticos, históricos.
Lá pelas tantas a encarregada de escrever as ficções de Bento Ferreira se aproximou do local onde eu estava sentada, observando algumas fotos, com uma cara de te-conheço-de-algum-lugar-mas-não-sei-de-onde e indagou:
-Você... é psicanalista, não é?
Consenti, fazendo um gesto de reverência com a cabeça. Ninguém precisava naquele recinto saber de minha verdadeira ocupação. A Ilha era pequena e era preciso manter sigilo.
Perguntou se eu havia gostado do que tinha lido. Um pouco sem graça informei que ainda não havia folheado o livro que versava sobre Bento (Ferreira).
Ela pegou da pilha de livros um exemplar, autografou e pediu permissão para ler um trecho que dizia:
Não devo dizer, nem sob tortura, como descobri a real história de Bento Ferreira, pois isso colocaria em risco a graça da história e se o texto perde para sempre a sua graça, a vida também acaba. O que posso dizer é que fontes seguras informaram acerca de tal história que repasso a vocês.
Informei a ela que as memórias de Bento Ferreira, a partir de sua leitura, soavam a mim como um romance policial e desenvolvi a idéia. Ela, percebendo, o meu aparente trânsito com a crítica literária perguntou se eu escrevia.
- Sim, escrevo. Mantenho uma página na internet. É um site livre. Não estou presa a nenhum editor, a nenhuma instituição.
- E você gostaria de se vincular a algum?
- Ainda não pensei a respeito.
Era mentira. Ela também mentia. Ofereci o endereço eletrônico e ela, com cara de desaprovação da minha ousadia, disse que não tinha tempo a perder com esse tipo de site e que muito menos tinha escutado falar de tal página:
- Você não quer escrever para mim, digo... comigo?
- Você sabe – desafiei – que eu sou uma psicanalista. E você acaba nesse instante de fazer um ato falho. O que tem a me dizer sobre isso?
Eu blefava. Tinha parcos conhecimentos acerca da psicanálise, mas sabia que a idéia do ato falho gerava sempre alguma espécie de mal-estar nas pessoas. Queria agredí-la. Sabia também que um psicanalista sério jamais se aventuraria a fazer interpretações selvagens desse tipo a céu aberto, mas ela merecia, era uma copiadora ambulante, uma “roubadora”. Eu sabia, por conta de outras experiências, que o roubador detesta quando é desmascarado. Estava a me valer da profissão que ela havia sugerido para mediar nossa conversa no intuito de desmascará-la. No entanto, sentia-me inocente porque ao fim e ao cabo ela havia me atraído até ali para me fazer crer que não interessava muito a origem do conteúdo do texto. Não havia mais originalidade. Tudo era plágio. O que importava era o canal. Fui levada, por associação-livre, à rua do canal. A imagem da rua do canal à noite me aterrorizava: parecia a Alemanha nazista em noite de chuva. Ela estava me ganhando por argumentação. Precisava sair dali o quanto antes. Mas, acalmei com a idéia de que ela não me queria morta, porque no fundo não acreditava que a originalidade era impossível. Ela me queria como fonte, porque entendia perfeitamente que eu sabia toda a verdadeira história de Bento Ferreira que ela queria contar. Assenti no jogo que era proposto e lembrei imediatamente da frase que diz que um psicanalista sabe muito, mas um poeta sabe tudo. Precisava me deixar escrever. Era preciso transformar Bento em poesia.
Ao sair exaurida do intenso fluxo de pensamento que me propunha, não via mais a roubadora. Não sabia sequer se ela existia ou se seria mais uma alucinação no caminho que eu fazia até Bento Ferreira.
1 comentario:
Manda ver L., quero saber a história de Bento Ferreira!
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