Digito os números iniciais na sequência. O telefone me oferece um nome possível para aqueles primeiros números. Engasgo ao ver o nome sugerido. Continuo digitando assertiva e aí sim aparece o nome de quem me interessa. Tum...tum...tum...Mãe? Fala, minha filha. Mãe te liguei para pedir a receita daquele bolo da vovó. Pela milésima vez, né? Você precisa fazer um caderno de receitas, não vou viver para sempre. Tá bom, mãe, eu preciso sim, mas enquanto você não morre e eu não tenho tempo de fazer o caderno porque a porra da minha chefe agora quer que eu...enfim, mãe você pode me dar a receita? Só um minuto. Anota aí: três ovos, duas xícaras de trigo, uma colher de sopa de fermento em pó, etc, etc... Obrigada, mãe. Agora preciso conversar outra coisa com você. É sobre a festa do dia vinte. Ai, minha filha, nem me lembre dessa festa. Dava minha vida pra não ir a essa droga de festa. Aquele bando de gente inexpressiva para a história da civilização. Pessoas que vivem num país de terceiro mundo, num estado de merda, numa organização que não faz a menor diferença na vida da população de uma maneira geral, se acham o último biscoito do pote, não é ridículo? Não vai dar pra mim, depois não tenho roupa, sandália de salto...iiiiii não, sofro só de pensar, fora aquela papagaiada de maquiagem, jóia. Não insiste. Tô fora. Mãe, me escuta, é importante pro papai. Devemos ir. Eu também preferia ficar em casa, tomar um drink, fumar um cig...você anda fumando? Não, mãe. É só força de expressão. Hum, sei. Olha, eu posso pintar o seu cabelo, fazer uma maquiagem, as roupas e o sapato a gente aluga numa casa de roupas de festas. Eu te ajudo. Minha filha, você que é jovem e bonita deve acompanhar o seu pai. Preciso desligar, estão me chamando no portão.
(Desligou a porra do telefone na minha cara. Nunca me ajudou a ser mulher. Tive que aprender tudo sozinha. Nas festas quem ia acompanhando meu pai era eu, porque ela não sabia se vestir e nem queria aprender, né. Odeio minha mãe por isso. Agora tenho que pagar as burras ao psicanalista para não me sentir fora da lei. Incesto. Deviam punir quem incentiva o incesto. Mas isso não fica assim tão barato)
Tum...tum...tum...
Mãe? Já não te falei que a porra do vizinho tá no meu portão? Mãe, cresci vendo você bater o telefone na cara dos outros usando a mesma desculpa. Eu sei que não tem ninguém aí (superior) o negócio é o seguinte: você vai a essa festa. Eu vou te arrumar e não se fala mais nisso, ok? (Risadas de bruxa do outro lado). Pode rir à vontade, você não vai fazer isso com papai outra vez. Minha filha, não se mete. Eu não sou sua filha. E eu não sou sua mãe. Eu não sou mãe de ninguém. Não me chama de mãe. Vou atender o vizinho. Tchau.
Tum...tum...tum...
Mãe, não desliga. Já disse que não sou mãe de ninguém. NINGUÉM. Dessa vez foi só pra dizer que se precisar de mim, estou aqui. Eu sei. Um beijo, mãe. Tchau, minha filha. Depois a gente conversa com calma.
2 comentarios:
Essas coisas da vida para doar o fígado na análise. Tum tum tum... ninguém aqui é mãe.
Sua mãe é um dos seus melhores personagens! Sempre que ela aparece é muito bom!
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