lunes, julio 30, 2012

Anna Hilst


Não vou fingir que não vi e antevi certas coisas no Mercado Central. Vi o rosto curioso de Anna Hilst ao ver a vendedora de temperos, vaidosa, dizer sobre a maravilha de seu molho de churrasco: “Apresento-lhes o molho “barbiecure”, o verdadeiro, o original".
Vi Anna Hilst se interessar pelo verdadeiro, vi seu desejo em se deparar com o real da vida sem anteparo, obscenamente.
Eu, que observo Anna Hilst que observa a vendedora de temperos com atenção, sei, por experiência própria, que o desejo da moça é logicamente impossível. Sei, por vivência e teoria.
  
Você me aparece em sonho e eu posso te ver chorar com clareza agora
Pede que eu te perdoe e me diz sobre tudo ser um grande equívoco
Minha mãe aparece e diz preu te perdoar de vez, preu te deixar partir
Que as coisas não são nossas, mas do mundo
É a primeira vez que ela me encoraja a te perder
E te chama de coisa
Fico rindo sozinha de poder escutar essas sutilezas
Mas depois sinto raiva em te ver fazer a escolha equivocada
Mais uma vez

Anna Hilst se lembra de ouvir dizer sobre uma avó que não conheceu, mas que escrevia umas coisas importantes. A senhora sua avó, pelo que contam, havia tentado demonstrar através de
uma arte antiga, quase extinta, o obsceno. A velhota morrera na incompreensão, na obscenidade de seu desamparo. É no mercado central que Anna se apercebe da mágica da vendedora de temperos: ela vendia não molho barbecue, mas “barbiecure”. Entende, em júbilo e sozinha, que existem os que enganam, os que se deixam enganar e não sabem que o fazem e os que, como ela, ao tentar descobrir a verdade, se deparam com a impossibilidade lógica, constituindo o grupo dos enganados ou enganadores, só que avisados.

Não existe um só dia em que eu não sonhe
Com você, sua possibilidade
E, ainda assim, sei do fim de todas as coisas
Das últimas vezes você me chamava
Melancólica e encenava me abandonar outra vez
Na casa do sonho, onde me foi concedido o ato da despedida,
- que nunca tive –
minha mãe aparecia sábia, bonita, tão amorosa, quente
E dizia preu te perdoar, que eu não era melancólica coisa nenhuma
Que eu era só uma obstinada em fazer o impossível
Acontecer
Nessa casa eu aprendia dignidade

Vi o momento exato quando Anna, no mercado central, decidiu-se por resgatar a atividade dessa avó desconhecida. Antevi a inauguração que levava a assinatura de Anna Hilst, a invenção de uma nova linguagem, que em muito se aproximaria da praticada por sua avó, a extinta literatura.

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