Ele decide mudar. Decide ir para uma casa menor, um
escritório menor, onde não caberão todos os seus livros. Quanto à mim, tenho
dor só de pensar em me separar do que é meu. Faz uma seleção de descarte muito
estranha: basicamente se desfaz dos de auto-ajuda e os de literatura. Feito
ratazana, devoro seus restos porque sou apropriada para a seleção de lixo, na
verdade trabalho com isso.
Esse de Clarice quero, esse de Lygia, amiga de
Hilda, esse do Machado também. A evolução das espécies do Darwin surge em meio
aos livros de literatura. Acho sintomático, mas vou ler mesmo assim, Darwin
como um romance pode ser bom.
Separo um Atlas também por lembrar de você dizendo
que o ensino da geografia na minha escola média deve ter sido precário. Rio
mais do que me humilho, ciente da dificuldade feminina para localizações: as
mulheres querem o infinito, não se importam com os limites.
Depois sento no chão, encosto a cabeça na parede e
reclamo um pouco da secura desses dias que parecem não me permitir constituir qualquer
distância da experiência onde eu possa escrever uma geografia outra.
A ratazana decide começar por Clarice. Decide
novamente por Clarice. Decide romper o preconceito que a distanciou de Clarice
todos esses anos, embora ainda acredite que os pseudo-intelectuais amantes da
literatura que só leram na vida um livro de Clarice Lispector vão destruir o
interesse do leitor por sua obra.
Ainda assim, acompanho Clarice toda linda e loira fazendo
literatura com potência de Instante-Já.
É um tapa de luva, totalmente inconsciente, decidir
começar por água viva.
E vejo Clarice sendo, fazendo literatura na
experiência, nada queixosa, atenta, sagaz.
Posso até recortar milhões de trechos incríveis que
devorei num único dia, mas existe uma carta de amor escrita a lápis na contracapa
e eu não sei me defender dessas coisas. Amém.
Ela envia para ele esse livro de instante-já, que
fala de aqui agora, de ser, mas ela não sabe ser longe dele. Diz coisas tão
bonitas, tais como “...sua mãe me disse que telefonarias. Espero o domingo desde
a quarta. Imagino sua voz e invento algumas novidades que finjo ouvir.”
Por que ele teria doado seus livros sem apagar essa
carta?
Exibicionismo?
Descuido de amor?
Tenho raiva do fim das coisas e escrevo para
terminar as coisas bonitas que não querem se despedir de mim, que se apegam.
Escrevo para não morrer de melancolia.
Escrevo para dizer que conheci uma vez um amor, que
o amor não é mentira, é verdade e que é colorido, é alegre e que brinca feito
criança.
Percebo que ainda não sei me separar do que é bom.
Não me ensinaram.
Por pura precariedade me separo escrevendo como
quem fixa melhor o conhecimento proferido, anotando.
Escrevo em letras garrafais É O FIM.
Escrevo para dar forma ao fim.
É uma obsessão, uma doença escrever.
Escrevo para não deixar as coisas terminarem no meu
corpo.
Escrever é anteparo. É prolongamento de vida.
Clarice que me desculpe, mas essa carta de amor na
contracapa de seu livro é muito melhor.
“Finjo que não sei que estou sozinha.
Entre um dia e outro, sonho
poderia vendê-los a um gibi
e comprar uma passagem,
mas o que adiantaria?
Os sonhos seriam publicados e
eu não precisaria fingir mais...”
Hoje eu escrevo para me separar da terrível verdade que é uma carta de amor.
1 comentario:
a carta de amor verdadeira, artigo de luxo.
guarde, pois vale milhões.
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