Alta madrugada e esses animais alcoolizados berrando em
minha porta tornam difícil o sono. Eu praguejo perder o sonho em que você me
aparece disponível, aberto, conversador, sem tanta pompa, sem tanta
circunstância. Não tão “artista”, talvez. Humano.
É doce, quase um presente, sonho de mar nesses dias de dor
em que minha pele, mais uma vez, é rash cutâneo e um pulmão que não reage.
É estranho – diz o doutor fazendo cara de é estranho – essa doença
acomete principalmente crianças e idosos...
Eu quase me incluo em uma das duas posições, mas me lembro
na iminência de anunciar: “ e também os românticos da segunda geração, doutor”, no
entanto, me calo óbvia, pois não é prudente enfrentar o mundo com os meus conhecimentos.
Incrível como ter alguma cultura nos dias de hoje tornou-se sinal de afronta e
ameaça. Eu sei e, talvez, por isso mesmo faço cara de idiota e boa vontade,
repetindo:”Nossa, crianças e idosos...puxa...que coisa...”
Escuto a ladainha da enfermeira que lê sobre meu ofício na
ficha e quer saber sobre o profissional que acompanha seu filho, porque lá no
bairro dela, a marginalidade está tomando conta e, você sabe, Dra, mente vazia,
oficina do diabo...Eu sei. Então, o Júnior andando com esses garotos...[ tenho
nostalgia do narrador que matei com minhas próprias mãos: alguém podia explicar
para ela que nesse caso eu sou o doente e preciso de sua concentração na
retirada de meu sangue]
É um sangue escuro demais, grosso demais, vivo demais para
ser o de uma convalescente – reflito.
Durmo para ver se encontro alguma pista em minha vida
onírica. Você que me vem em sonho podia vir agora e dizer o que não
conseguimos, definitivamente.
Na saída, a enfermeira me abraça e agradece a atenção. Raio
x nenhum poderá ler minha preguiça para os idiotas. Sorrio de volta: ”Se for
preciso, estamos aí!”. Essas formalidades ainda me matarão. Um infarto, talvez –
imagino.
Ainda tento refazer o sonho e vejo você tão obediente. Sinto
incômodo como se eu estivesse anos-luz a sua frente.
Não seremos nem em sonho poupados de nossas precariedades
psíquicas?
Você tem um casaco verde-musgo no colo, enquanto eu dirijo e
te digo essas minhas intolerâncias cotidianas que te fazem rir, mas farejo
despedida, um último encontro. Não tem graça.
Por questão de sobrevivência, cedo aprendi o cheiro da
partida.
Et voilá, te deixo na rodoviária desiludida, avisada.
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