lunes, octubre 29, 2012

Intratável II


Alta madrugada e esses animais alcoolizados berrando em minha porta tornam difícil o sono. Eu praguejo perder o sonho em que você me aparece disponível, aberto, conversador, sem tanta pompa, sem tanta circunstância. Não tão “artista”, talvez. Humano.

É doce, quase um presente, sonho de mar nesses dias de dor em que minha pele, mais uma vez, é rash cutâneo e um pulmão que não reage.

É estranho – diz o doutor fazendo cara de é estranho – essa doença acomete principalmente crianças e idosos...

Eu quase me incluo em uma das duas posições, mas me lembro na iminência de anunciar: “ e também os românticos da segunda geração, doutor”, no entanto, me calo óbvia, pois não é prudente enfrentar o mundo com os meus conhecimentos. Incrível como ter alguma cultura nos dias de hoje tornou-se sinal de afronta e ameaça. Eu sei e, talvez, por isso mesmo faço cara de idiota e boa vontade, repetindo:”Nossa, crianças e idosos...puxa...que coisa...”

Escuto a ladainha da enfermeira que lê sobre meu ofício na ficha e quer saber sobre o profissional que acompanha seu filho, porque lá no bairro dela, a marginalidade está tomando conta e, você sabe, Dra, mente vazia, oficina do diabo...Eu sei. Então, o Júnior andando com esses garotos...[ tenho nostalgia do narrador que matei com minhas próprias mãos: alguém podia explicar para ela que nesse caso eu sou o doente e preciso de sua concentração na retirada de meu sangue]

É um sangue escuro demais, grosso demais, vivo demais para ser o de uma convalescente – reflito.

Durmo para ver se encontro alguma pista em minha vida onírica. Você que me vem em sonho podia vir agora e dizer o que não conseguimos, definitivamente.

Na saída, a enfermeira me abraça e agradece a atenção. Raio x nenhum poderá ler minha preguiça para os idiotas. Sorrio de volta: ”Se for preciso, estamos aí!”. Essas formalidades ainda me matarão. Um infarto, talvez – imagino.

Ainda tento refazer o sonho e vejo você tão obediente. Sinto incômodo como se eu estivesse anos-luz a sua frente.

Não seremos nem em sonho poupados de nossas precariedades psíquicas?

Você tem um casaco verde-musgo no colo, enquanto eu dirijo e te digo essas minhas intolerâncias cotidianas que te fazem rir, mas farejo despedida, um último encontro. Não tem graça.

Por questão de sobrevivência, cedo aprendi o cheiro da partida.

Et voilá, te deixo na rodoviária desiludida, avisada.

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