"(...) e canto porque é esse o destino da minha garganta
e canto porque criança aprendi nas feiras:
ave e mulher cantam melhor na cegueira"
Cantares de perda e predileção, Hilda Hilst.
Guardo a chuva que fora anunciada essa manhã e que, dissipada pelo sol excessivamente brilhante dessa Selva que me habita, desaba dentro de mim agora.
O olho mareja de saudade é do brejo mesmo, diacho. Libra de carne que dei para adentrar a civilização.
No entanto, tenho minhas dúvidas se vi de verdade ou se o embaço de meus olhos fantasiaram a terra prometida: morro verdinho, neblina, café fresco e o casaco de vovó emprestado, quentinho, que um dia herdarei, ela me garantiu.
Eu não sei se quero sentir o seu cheiro pra sempre, mesmo depois de lavada a roupa, a marca característica. Doçura e doação. Vai ser melhor sem herança, vó.
Acho que acordei meio triste, porque pensei ter visto o que não vi ou existe a possibilidade de ter existido tão rápido que se amputou o tempo dessa experiência.
Um tumulto danado. Minha vizinha ontem, já era noite, em pura angústia, chegou dizendo umas coisas, um japonês correndo bateu atrás do carro dela. Bem ali, em frente àquele prédio, você me disse e eu lembrei na hora, porque não acredito em acaso.
Ofereci um chá. Ela agradeceu. Que bom, meu marido de plantão essa noite, eu estou tão cansada e assustada precisava mesmo falar com alguém. Ainda bem que você existe, se não eu ia morrer de tédio no chat da internet, na solidão daquelas conversas vazias. Tem suco de laranja também, se você preferir.
Ela contava com o olho cheio de chuva, parecido comigo hoje. Essa vizinha, eu gosto tanto, porque me identifico com sua angústia palavrosa. Ontem ela abusou um pouco: descarregou a chuva de seus olhos nos meus, mas tudo bem, que amizade é para suportar essas coisas também.
E se despediu. Carregada, eu fui dormir tão cedo. Escutei coisas terríveis durante a semana que nem posso te contar. Então sonhei que eu era a vizinha e que você, pela primeira vez, se dirigia a mim com um pedido. Econômico, objetivo, masculino. Eu pensava no sonho: "mas é só isso o que você demanda?" e você explicava que não, que era bem mais, mas que, tal qual Alice no país das maravilhas, tinha um coelho te apressando, na cola. Quis, educadamente, mesmo na pressa, saber se eu estava bem, se tinha me machucado. Mes petits bobos não atrapalharão qualquer pedido seu. Fiquei firme que nem rocha, engoli a dor na macheza, na valentia e foram conversados assuntos outros, como se nada estivesse acontecendo, como se o japa apressado não tivesse me acordado na pancada bem ali naquele lugar tão simbólico, como se meu coração não estivesse agitado pelo real de viver na solidão, like everybody.
Na saída eu te dizia que não tinha medo de mais nada, porque sabia que estava sonhando e que você era um sonho, então podia pedir o que quisesse. Você pedia para eu não te agredir, que só queria dizer uma única coisa, que eu me tranquilizasse, porque quem bate na traseira é que é o culpado, que naquela hora era como se meus olhos estivessem vendados e que é importante que algumas coisas funcionem assim...
No hay comentarios:
Publicar un comentario