Desejava em vão que o vento furioso dessa tarde me apagasse da sua memória quando o telefone tocou. O ringtone com a música daquele pianista que tanto gosto não me protegerá até ouvir sua voz. Antevejo.
- Oi
- Seu pai tem boi?
(risos)
Ridiculamente tento destruir, na mais pura molecagem, qualquer verniz de erotismo. Você não consiste a menina em mim, então inflamo, expondo a mulher que tentara sufocar, por puro medo do inenarrável.
Para não perder o costume, repito o ritual de atar a fita de sisal, já esgarçada, no tornozelo - quase não amarra mais. Persevero no objeto adolescente porque preciso de força para bordear o vazio, sabendo que isso não se faz sem solidão, silêncio e alguma virilidade.
Não há amparo para essa dor em colo de homem algum.
É um buraco impossível de fechar.
Cuido para não sangrar demais esse rombo constituinte.
É preciso ser mulher de um certo modo para suportar isso que eu te conto até o sangue estancar e você aprender a ser mulher de outro jeito, me instrui a senhora já gasta, cabelo abóbora, como se adiantasse falar, como se fosse em série.
Eu me esforço para a menina irresponsável não tomar a cena que lavro com insistência e cansaço. Nesse trabalho sou de ferro, quase um macho, só pra ver se me broto em outra cor, sem deprimir no roxo dessa parede que me olha.
Têm profundidade os melancólicos e são os que melhor lêem o mundo, sem dúvida, uma vez que tematizam a morte - constatação familiar, espanhola, durona, vilamatas.
Desejo em segredo perder o que nunca tive para ver se aprendo a lição ao extremo
Já sei delinear com destreza os olhos - lápis preto que ganhei de aniversário
Aí só falta chorar em frente ao espelho
Chorar para mim, só para mostrar o que de antemão já sei
forjar umas lágrimas gordas, negras, que pretendem ser, sem no entanto poder, infinitas

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