lunes, abril 02, 2018

Angor pectoris

Decidi que trabalharia na véspera do feriado. Confirmei a agenda porque sabe como é brasileiro em véspera de feriado. Acordei animada. Fui pra hidro com o pessoal da terceira. Terceira margem do rio, só se for. Um tempo todo deles. A sabedoria de que não adianta correr. Final da aula é vestiário e banho rápido. Ainda consegui ver Bebel com Raquel entrando na natação infantil. Aula seguinte. Corri voada. Consultório e deixo-me instruir pelo tempo de outros. Narrativa vai, narrativa vem. Hora do almoço. Penso que, se correr, consigo comer e passar em casa para colocar a calcinha que, sintomaticamente, não levei dessa vez na bolsa da hidro. Vai sem calcinha - pensei na hora, atrasada.

Tudo bobagem. Uma ligação me fez cancelar a agenda e seguir rápida para o pronto-socorro cardiológico. O outro lado dizia de uma dor no peito, irradiando pro braço esquerdo. Que merda, tá infartando. Vai sem calcinha de novo. Pode ser a última vez que você vê.

Lá se vai uma tarde primorosa na unidade coronariana. Tudo o que se seguiu foi sem calcinha (mas quem precisa saber? Existem coisas que a gente não pode falar porque senão perde a poesia e poesia é isso: velamento do horror, mas ele tá ali, o buraco).

Percebi um rosto se aliviando na minha presença, embora dissesse que não precisava ir, que tudo estava sob controle. Tava nada, eu sabia, com todo meu toc de organização, justo naquele dia, a calcinha tinha ficado pra trás. 

O medo dos procedimentos. A ansiedade no leito. Um sobe e desce da maca eletrônica como que para fazer graça e suportar a dureza. Um tira e põe de eletrodo para ver se dá ruim no monitor tentando disfarçar a angina. Um convite fora de lugar para o médico tomar um cerveja com ele depois que aquilo tudo passasse.

Eu ali de acompanhante rindo e falando trivialidades para compor a cena do não há de ser nada, mas observando a agonia de quem não sabe o que vai ser.

Lembrei que comecei minha carreira trabalhando em hospital e me perguntei: se o doente não fosse tão próximo a mim o que eu faria para acalmar aquilo tudo?

Ele disse que tinha um Rancière na bolsa chamado O inconsciente estético ou algo parecido. Eu tinha implicância com o Rancière por conta de outros carnavais, mas atuei um “e se eu lesse para você?”

Ele sorriu. Intelectual internado em pronto socorro cardiológico é difícil de domar. Eles sabem que toda razão é inútil para controlar a natureza, a biologia que nós, seres de linguagem (fala enfatuado), temos.

Então me coloquei a ler. Nunca li tão concentrada e, ao mesmo tempo, com entonação. O bicho foi se acalmando, foi se acalmando até que falou “você sabe que o texto lido na sua voz me fez pensar uma coisa que eu não havia pensado numa leitura silenciosa?” e devaneou, saiu dali, foi para o Japão. Meu projeto estava dando certo. 

Lembrei que eu gostava de ser chamada para ler o evangelho na igreja, lembrei que nos grupos de estudo eu sempre me ofereci para ler em voz alta e ali eu estava lendo mais uma vez, só que num hospital, sob o peso de um diagnóstico difícil para uma pessoa tão nova e próxima.

Acalmada a fera, a pressão baixou e a alta saiu: infarto sem sequela aparente com recomendação de mais exames, menos tabaco, menos trabalho e mais exercício físico.

Não sei se foi a leitura sem calcinha num hospital para um familiar enfermo, mas fato é que nunca li daquele jeito.

Em casa, no banho, o aviso mensal. Que sorte ter sido só à noite. Imagine se isso acontece durante o dia, estaria perdida.

Meu medo agora não é o resultado desses exames, mas é de nunca mais querer sair de casa com calcinha. Essa minha compulsão de querer criar padrões de sentido onde não há. O buraco fala por si só. Escancara, na verdade. Eu já consigo ouvir a estética do que se apresenta em disfarce.


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