jueves, junio 14, 2018

Depois que eu te disser tudo o que sei e o que não sei sobre mim


Voz off é ex-atleta. Imagino que por esse motivo ela consiga suportar uma vida religiosa na psicanálise: abre a porta de seu consultório de segunda a sexta no mesmo horário há pelo menos 30 anos, apresenta um sorriso que não muda, jamais se despede de mim e eu tenho uma série de interpretações para o fato.

Sei também de voz-off que ela nunca se rendeu a trabalhos institucionais. Difícil pensar como aguenta isso sem evocar sua vida passada de esportista. Sabemos que o atleta repete, muitas vezes, em seu treino, as mesmas estratégias até se aperfeiçoar. Realiza isso com paixão e insistência. Talvez, esse treino prévio, em sua juventude, tenha criado um terreno propício para o que sucedeu na vida dessa jogadora.

Faço essas conjecturas com o pouco que sei de voz off. E, aliás, acho que prefiro não saber muito mesmo, pois assim salvo o exercício da elucubração que, por sua vez, me salvará, já que nele posso projetar, criar o mundo a meu modo.

Preservar essa paranoia criativa tem se mostrado vital na idade adulta, já que a adolescência acabou num corte violento de um jogo de vôlei que perdi. Dizem que não devo reclamar. Tão difícil, pois lá se foram as intensidades, as esperanças megalômanas, os sonhos de voar, as festas com suas luzes coloridas e a vitalidade de um corpo que não volta e não volta, nem adianta os polivitamínicos, ômega 3, probióticos, etc, etc. 

Só sobrou a realidade de todo dia e o resto de uma vida inteira para dar sentido. 

Você pode pensar que eu estou entrando no terceiro ciclo de Saturno. Eu já atravessei dois e posso te garantir que não é isso. Existe uma novidade que inventei, depois de ter criado minha própria matéria prima, já te disse. Foi um caminho árduo, mas eu olho para tudo isso e até sinto orgulho dos frutos do meu empenho. De verdade.

Dei um passo a mais depois que o espelho do Lagache tombou de vez e eu vislumbrei outra ilusão, bonita, forte, legítima, embora agora eu esteja mais avisada: é uma ilusão fazer o quê, meu Deus. Não sobra nada numa psicanálise. Não encorajo ninguém, mas escuto se alguém bater a minha porta querendo contar. É uma posição ética. Que desça aos infernos os que possam se responsabilizar por isso.

“Resumidamente, eu não sei de qual vai ser daqui para frente, tudo muito aleatório” como diria aquele adolescente engraçado de outro dia, cheio de gíria, passador da cultura, genial. Mas como não sou ele e sofro de pós-modernidade, não suporto muito a suspensão dos tempos e gostaria muito de saber se, agora que a casa está rearranjada, se será só repetição e, além disso, entender porque preciso ainda escrever, depois de já ter dito tudo o que sei e, principalmente, o que não sei sobre mim à essa mulher.


Ela desfere outra cortada, olhando no meu olho, sisuda, seríssima, implacável: “- essa última questão merece ser verificada” e me conduz à saída, encosta a porta sem se despedir. Mais uma vez.

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