lunes, junio 22, 2020

Dimensão quatro



A  curiosidade pôde mais que o medo
e eu não fechei os olhos”
There are more things , J.L.B.


Há dias com um texto sobre o tempo entalado na garganta. Começaria assim: “O tempo é um menino reto e se situa no agora. É da gente querer voltar com ele para lugares específicos. É da gente querer apressar um tempo que se adjetiva ruim para passar logo a dor, porque o tempo não se adjetiva, ele é apenas, ele vive alheio a nós.” Dali para frente não se escreveria nada, mas era esse trecho voltando todos os dias, perturbando a narrativa presente. Numa manhã de domingo, decidi rápida, passei um café querendo escrever e o sonho da noite me voltou. 

Você me dava quatro abraços ao longo de um único dia. O sonho era de abraço, mas me peguei no número quatro, esse enigma que não se soluciona nunca. Era um lançamento. Alguma coisa nova você fazia acontecer. Eu escutava aquela música e a reconhecia. Então entrava no prédio, mesmo sem poder. Meu filho me esperava dormindo em casa. À revelia disso, eu entrava, me demorava, esquecia como quem esquece de um documento num ajuntamento para dar entrada a um diploma, por exemplo. Era tão óbvio que aquele esquecimento cobraria um preço como eu sou óbvia agora. Você ainda está aí? Bem, e era como se eu fosse um rato siderado pela flauta em Hamelin. Eu colocava em suspensão minha existência e me entregava toda. Apenas ia. Eu era só mais um rato. No hall, muitos entravam e saíam e comemoravam aquele feito. Você me encontrava exatamente no meu olhar de júbilo, aquele que eu faço encantada toda vez que reconheço um criador de verdade. Não sei como você me fazia acreditar que o olhar que eu desferia não era para a novidade, mas para você. Então acontecia o primeiro abraço. Demorado. Devastada, eu precisava muito daquele colo, mais do que eu poderia dar na ocasião. Você pedia para eu não sair de perto um minuto que você precisava dar atenção àquelas pessoas todas, mas que eu não saísse dali. Eu estava de tênis e legging, essa roupa que as mães colocam por ser prática e fazer parecer que você se preocupa com o autocuidado, embora estivesse inadequada para a formalidade da situação (é de mim uma certa inadequação, quase sempre. Nesse ponto, meu sonho imitava a vida). Eu esperava preocupada com a sensação de estar esquecendo algum compromisso. Você voltava de tempos em tempos para me abraçar. E a cada abraço, uma onda quente alcançava o meu coração. Não sei precisar quando decidi pelo compromisso em detrimento daquela fuga. Era uma dor absurda abraçar o princípio da realidade. Uma dureza. Castração operando em tempo real e aquela secura na garganta - a do sonho - a mesma da vida. Corta para outra cena. Na rua da minha casa, todos os vizinhos me julgavam sobre como eu poderia deixar um bebê sozinho em casa chorando para me aventurar por aí. Todos menos aquela mulher que confessara, no privado da clínica, havia ela se apegado às fraldas pós cirúrgicas que sua obstetra recomendou durante quinze dias e ela estendeu o uso por três meses dizendo se tratar do único conforto que tivera no puerpério. Seu filho vai sobreviver à sua ausência, ela sorria para mim e retirava numa tacada uma tonelada de peso das minhas costas. A hérnia entre L5 e S1, que eu fiz no tombo da escadaria da faculdade em que ministrei aulas de como desaparecer completamente, regenerava, instantaneamente, nesse momento, e eu podia acompanhar a cura por um plano em quarta dimensão que se abria claríssimo. Visão de ultrassonografia. Eu vi tudo tudo tudo. Eu sei que me curei ali pela boca daquela mulher que não estava preocupada em me julgar. A única. Eram tempos de uma pandemia esquisita em que a população, relegada à própria sorte por seus desgovernos, ocupava-se de julgar o próprio irmão com muita “frerocité”. Era a mulher da quarta dimensão, a que me salvava. Os físicos eram avisados da existência desse plano. Algumas mulheres também, mas sem o saber desses estudiosos.  Isso quando fui abraçada pela quarta dimensão, esse tempo que eu não esqueço, esse tempo onírico conjuga a verdade absoluta da minha direção. Não queira ver. 

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